O uso da língua não é igual para todas as pessoas.
Umas usam-na de modo estético. É o que fazem os escritores e os poetas. Escrevem esteticamente textos que são obras de arte. Há textos muito belos, mesmo textos sublimes. A língua é, nesta sua dimensão, um veículo e um instrumento de arte, de prazer, até de simples entretenimento.
Outras usam-na para comunicar. Como ferramenta do contacto entre pessoas, suporte de mensagem e de diálogo. À língua, nesta modalidade, ou nesta perspetiva, se se preferir, não se pede que seja bela, que seja artística, que seja poeta e muito menos que seja sublime. Só se lhe pede que seja eficiente.
A posição de quem não quer o novo acordo ortográfico é legítima e até apropriada, na primeira das modalidades. Para muitas pessoas a língua é cultura, é arte, é beleza. A função comunicativa da língua, não deixa de existir e de ser relevante, mas é secundária.
A minha posição é diferente. A língua, para mim, embora leia muito e goste de ler prosa de qualidade, poesia, romance, filosofia, a língua tem a função primordial que lhe deu vida: a de ser veículo de comunicação entre pessoas.
Confesso que não aprecio particularmente esta nova ortografia, mas já me habituei. Acho importante, sim, que a eficácia comunicativa da língua melhore. E melhora mesmo, naquilo em que reduz as diferenças da língua e da sua ortografia na grande comunidade lusófona com mais de duzentos milhões de pessoas.
As pessoas cultas queixam-se da perda de qualidade da ortografia nesta última reforma. Tem sido uma constante a redução qualitativa da ortografia.
Vislumbro neste fenómeno, uma dicotomia entre a qualidade e a quantidade. No início, só as pessoas cultas faziam uso da escrita, só elas liam e só elas escreviam. D. Dinis foi o primeiro rei de Portugal a saber ler e escrever. Foi mesmo um bom poeta. O alargamento do âmbito daqueles que escrevem veio trazer consigo uma tensão para a perda de qualidade da língua, como consequência da menor qualidade cultural das pessoas que a utilizam na forma escrita, que a leem e escrevem. A progressiva extensão da alfabetização e o fenómeno da cultura inculta veio pressionar a ortografia para uma modalidade mais próxima da expressão fonética e uma perda da coerência etimológica. Houve sempre, na história da língua portuguesa, uma versão culta, etimológica e alatinada, e outra plebeia, inculta e fonética.
Este acordo ortográfico representa uma sobreposição da quantidade à qualidade, do som à forma. Nisso é negativo.
Mas constitui também um progresso muito importante da função comunicativa da língua, naquilo em que melhora muito a eficácia da língua como veículo de contacto entre os povos que falam português. Para mim que, na minha profissão e no meu dia a dia, faço um uso sobretudo utilitário da língua escrita, esta vantagem sobreleva o incómodo de uma ligeira perda de qualidade.
Tenho mesmo a sensação de que a nova versão é tão má como a anterior, mas é mais eficaz na função comunicativa.
Esta é uma visão racional, que respeito mas não sou capaz de cumprir.
ResponderEliminarA minha, e a de muitos portugueses, é uma ligação emocional, feita de memórias, boas memórias. Os maus tratos de que a nossa língua é vítima, diariamente, nos jornais, nas televisões, feitos por gente supostamente culta, é uma coisa que me aflige.
Tenho a sorte de já poder transgredir, de ter a liberdade de escrever como aprendi... é um privilégio que a idade me oferece.
E como ainda tenho na estante muita leitura a cumprir...